“A Arte não reproduz o visível, ela faz visível” (Paul Klee)
“Só se vê aquilo que se olha”. Tudo o que se vê por princípio está ao alcance do olhar. O mundo visível e o mundo dos projetos motores são partes totais do mesmo ser; e é essa concepção que nos impede conceber que a visão é como uma operação do pensamento, levantada diante do espírito, formando um quadro ou uma representação do mundo.
“O corpo é ao mesmo tempo vidente e visível”, tem uma face e um dorso, um passado e um futuro, entre outras coisas.
Para Merleau Ponty o espírito sai pelos olhos para ir passear pelas coisas, e como diz Max Ernest: “assim como o papel do poeta, desde a célebre carta do vidente, consiste em escrever sob a inspiração do que se pensa, do que se articula nele, o papel do pintor é cercar e projetar o que nele se vê”.
Como, por exemplo, o espelho, que surgiu no circuito aberto do corpo vidente - visível. O espelho aparece porque há uma reflexidade do sensível, ele a traduz e reduplica; já um cartesiano não se vê no espelho, vê um manequim, um exterior do qual tem todas as razões de pensar que os outros igualmente o veem, se ele se reconhece no espelho é um efeito da mecânica das coisas, no entanto é seu pensamento que tece esse vínculo, a imagem especular nada é dele. São apenas, portanto, pensamentos que formamos, e não atributo das coisas mesmas.
“Não há visão sem pensamento. Mas não basta pensar para ver”. A visão é um pensamento condicionado; nasce por ocasião daquilo que sucede no corpo, é excitada a pensar por ele, tudo o que se diz e se pensa da visão faz dela um pensamento, mas o enigma da visão não é eliminado: ele é remetido do "pensamento de ver" para a visão em ato.
Ponty afirma que a alma pensa segundo o corpo e não segundo ela própria; talvez ele concorde com Platão nesse ponto, pois para ele a alma e o corpo estão unidos e, enquanto assim permanecerem, a alma não pode ser totalmente livre ou pura, pois o corpo está submetido aos desejos, paixões, dúvidas, entre tantas outras mais.
Prosseguindo, “a visão do pintor não é mais um olhar sobre um exterior, reação físico-óptica” (P. Klee) somente com o mundo. O mundo não está mais adiante dele por representação: antes o pintor é que nasce nas coisas como por concentração e vinda a si do visível.
Klee diz que o pintor teria nessecidade de um entrelaçamento de linhas tão embrulhado que já não poderia tratar-se de uma representação verdadeiramente elementar.
A ideia de uma pintura universal, de uma totalização da pintura, de uma pintura inteiramente realizada, é destituída de sentido.
"Será que o mais alto ponto da razão é verificar esse deslizamento do solo debaixo de nossos pés, é chamar pomposamente de interrogação um estado de estupefação continuada de pesquisa um caminhar em círculo de ser aquilo que nunca é completamente?" (M. Ponty). Se nenhuma pintura remata a pintura, se mesmo nenhuma obra se remata absolutamente, cada criação muda, altera, aclara, aprofunda, confirma, exalta, recria ou cria de antemão todas as outras. Essa afirmação de Ponty nos eleva ao maravilhoso mundo da arte.
O olho realiza o prodígio de abrir à alma aquilo que não é alma. Um pintor não pode consentir em que a abertura ao mundo seja ilusória ou indireta, em que o que se vê não seja o próprio mundo, em que o espírito só tem que se conformar com os seus pensamentos ou com outro espírito. Finalmente, isso quer dizer que é próprio do visível ter um pano de fundo invisível no sentido próprio que ele torna presente como uma certa ausência.
“O que tento traduzir-vos é mais misterioso, emaranha-se nas próprias raízes do ser, na fonte impalpável das sensações” (J. Gasquet, Cézanne).
MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. In: Coleção “Os Pensadores”, São Paulo: Abril Cultural, 1994.
José Renato Gaziero Cella
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