Texto escrito no final do século XX
Estamos vivendo o crepúsculo do século que foi o mais sangrento de toda a história da humanidade. As filosofias adotadas por líderes e movimentos, ao enquadrarem a concepção de mundo a seus limites, propiciou a formação de mecanismos excludentes de povos inteiros que, em face do poderoso aparato bélico trazido pela tecnologia, passaram a ser sistematicamente exterminados.
Com efeito, as três últimas gerações brotadas na terra, dentre as quais nos incluímos, foram capazes de aniquilar nações inteiras, com dados assombrosos que relatam o assassínio de cerca de 40.000.000 de pessoas neste século.
Tais seres não foram mortos porque ofereciam perigo de vida ou por disputarem territórios, o que do ponto de vista político tornaria até justificável a batalha. Não, pessoas passaram a ser exterminadas pelo simples fato de professarem determinado credo religioso, ou por manifestarem determinadas preferências ideológicas, ou por pertencerem a determinada etnia ou raça, enfim, por não se conformarem aos estreitos limites das concepções de mundo dos líderes que exerceram e exercem o poder.
Uma das grandes responsáveis por tudo isso foi a filosofia de Platão — em especial o livro VII da República — que, em seu tom messiânico, dizia que ao líder caberia trazer a humanidade, que vive nas sombras, à luz. Isso permitiu a expansão do Império Romano que, por meio do cristianismo “platônico”, infestou o mundo, permitindo que nosso século gerasse o nazismo, o comunismo, o fascismo, a expansão da “guerra-santa” do islã, enfim, de todos os regimes totalitários que pretenderam e pretendem se impor pela negação de outras ideias que teoricamente estariam no mundo das sombras a que se referia Platão havia quatro séculos antes de Cristo (absolutiza-se a parte e a toma como se fosse o todo).
Mas quem disse que o ser humano vive na sombra e por isso deve ser libertado por alguma criatura que se julga iluminada?
O grande trabalho de nossos líderes, para se manterem no poder e em situação de privilégio, é nos convencer de que somos débeis e por isso devemos ser salvos (por eles).
A partir do momento em que um “fanático” convence pessoas de que elas possuem uma “mácula” inata, imediatamente surgirá a necessidade de salvação, cuja fórmula invariavelmente será distribuída por aquele “fanático”, que terá o monopólio da salvação daquele mal artificialmente construído.
Tais “fanáticos”, quando alçados ao poder por seus seguidores, tendem a exterminar todos aqueles que não se sujeitam às suas doutrinas, ou seja, aqueles críticos profundos que não aceitam a ideia primeira de mácula inata. É claro que são toleradas críticas internas ao sistema, ou seja, teorias que, sem questionar seus alicerces, interpretam desta ou de outra forma aquele mundo limitado.
Daí a explicação de ser possível a convivência de várias seitas cristãs, vários partidos comunistas de orientação distinta, diversas seitas islâmicas. O fato é que esses pensamentos não questionam as bases dos respectivos sistemas, limitando-se a interpretá-los de modo a restar intactos seus alicerces.
O problema não é a existência de “fanáticos” — loucos temos aos milhares — mas sim a possibilidade de haver pessoas que passem a crer nas idéias absurdas daqueles loucos. Hitler não foi o problema, mas sim a nação alemã que se sujeitou ao seu pensamento.
Por que tendemos a acreditar que precisamos ser salvos?. Por que toda uma civilização — a ocidental — foi convencida de que uma maçã ingerida por um casal foi causa de todo o mal e por isso, ao nascer, todos estão manchados por um “pecado original”? A população, quando convencida de sua mácula original — artificialmente forjada — sente uma necessidade de ser salva, além de encontrar uma forma pueril de justificar a existência do mal no mundo. E o caminho da salvação a ser trilhado será dado por aquela casta de doentes que inventaram a existência do pecado. Essa classe — a sacerdotal — será sustentada pelos “pobres diabos” que anseiam pela salvação.
Essas castas “iluminadas”, como dignas representantes e mediadoras da salvação, têm seu futuro assegurado às custas daqueles que acreditam nas suas teorizações. Não é surpresa que nossos bispos estejam sempre de faces rosadas e esbanjando proteínas, os feiticeiros em comunidades primitivas sempre estejam em posição de destaque, da mesma forma que nossos Stalins, Hitleres, Francos, Mao-Tse-Tungs, Komehinis, grandes timoneiros que formam o “clero” de nossos tempos.
Assim, após convencer o povo de que há uma mácula inata e que, em decorrência disso, surge a necessidade de salvação, aqueles que desejam se manter em posição de destaque e com privilégios, devem também convencer aquele povo de que possuem a chave exclusiva para a salvação, sem a qual ninguém poderá ser feliz.
Os líderes leigos (comunistas, fascistas, liberais, nazistas) prometem o paraíso na terra e os religiosos o paraíso no céu. Todos uns escroques sórdidos, inescrupulosos e repugnantes.
Como alguém pôde manter a crença de uma civilização inteira, por quase dois mil anos, de que um imbecil e fanático proveniente do deserto da Galiléia nasceu e morreu na cruz para nos salvar? Quem precisa de salvação? Por que uma criança recém nascida, linda, carrega consigo a mancha de um pecado original? A crença nessas superstições tem ajudado a perpetuar privilégios de facínoras que, como dito, neste século já mataram milhões; sem falar na possibilidade que esses sacripantas têm de destruir o mundo em apenas alguns segundos.
O que levou Platão a formular seu pensamento foi a necessidade de encontrar uma explicação racional que desse sentido à existência, pois a sociedade grega — em função de peculiaridades históricas que não interessam aqui — não aceitava mais as explicações trazidas por seus mitos.
Porém, pelas razões expostas acima, Nietzsche afirmou que “foi pior o remédio do que o mal”, ou seja, o pensamento platônico, ao pretender explicar o sentido da vida (tentativa também frustrada em todos os grandes sistemas filosóficos e/ou teológicos, os quais têm sua raiz no pensamento platônico), em vez de desvelar a liberdade inerente ao homem, acabou por acorrentá-lo.
É evidente que há pensadores que no decorrer dos séculos, embora muitas vezes incompreendidos e até mesmo perseguidos, têm conseguido romper com o presídio platônico.
Embora haja grandes expoentes na antiguidade, cumpre tratar dos modernos. Maquiavel foi o primeiro pensador a separar a política da moral, a qual invariantemente continha fundamentos metafísicos. Assim, o poder deixou de ser legitimado em deuses ou tradições (ver a obra “Economia e Sociedade” de Max Weber) e passou a ser entendido de forma racional, cujo exercício decorre apenas e tão-somente da vontade livre dos homens, condutores de seu próprio destino.
Isso foi possível graças à ciência que, tendo começado a destruir vários dogmas religiosos (a terra como centro do universo, etc.), permitiu que o homem saísse de sua posição contemplativa e ousasse modificar o mundo (antes criação divina), o que veio a culminar no antropocentrismo renascentista.
É claro que isso não fez desaparecer o pensamento messiânico de contornos platônicos, pois o que houve foi apenas o deslocamento do poder das mãos da Igreja para as mãos leigas. Os líderes leigos continuaram a se considerar salvadores, sobretudo com o auxílio da ciência que trouxe o sentimento otimista de se controlar o mundo, um dos fatores maléficos que levou às consequências desastrosas de nosso século.
O fato é que a ciência, embora muita criticada quando vista como salvadora, só veio a ser posta em seu devido lugar quando da explosão das duas bombas atômicas no Japão, momento em que se percebeu que, em vez de representar o bem em si, a ciência pode ser também a nossa própria algoz.
Somadas à recente crise da ciência, interessante mencionar também as crises do antropocentrismo e da teologia moral, sendo que ambas se deram no final do século passado e início desse.
O Homem, sendo visto como ser especial — imagem e semelhança de Deus — e que, em face de sua racionalidade que o distinguia de todos os outros seres, assumiu um papel de “Senhor do Mundo” no renascimento, a partir do pensamento de Charles Darwin foi reduzido a um mero ser que, como todos os outros, é fruto da evolução decorrente da luta pela sobrevivência.
A razão passa a ser vista como um mero instrumento de auxílio na seleção evolutiva e não mais como aquele nobre instrumento que distinguia o homem — superior — dos demais seres. Essa retirada do Homem como centro do Universo se tornou ainda mais crítica quando se descobriu que o nosso sistema solar ocupa uma mínima parte de nossa Galáxia e que essa, por sua vez, não é a única.
Portanto o Homem, além de deixar de ser visto como uma criatura especial, foi despejado da posição de centro do universo e assumiu a mísera posição de um ser finito e contingente frente à imensidão do Cosmos.
Tanto o homem quanto a terra e o sistema solar são contingentes, sendo que o fato de existirem ou não em nada modificaria a máquina do Universo. O homem deixa de ser o centro e passa a ser um detalhe (um “inseto”), fato esse que mexeu na sua auto-estima e possibilitou o pessimismo próprio dos filósofos contemporâneos. Nietzsche fala do “espírito infeliz”, Schopenhauer na ausência de sentido em tudo, Heiddeger compara o ser ao nada, etc. Esse sentimento também se espalha no mundo das artes, bastando ver a literatura do final do século passado e início desse.
Como se não bastasse a presença de Darwin, a psicanálise criada pelo médico austríaco Sigmund Freud ampliou o mesmo efeito apocalíptico para a auto-estima do Homem. Se com Darwin o homem foi reduzido a um “nada” do ponto de vista espacial e morfológico, com Freud o homem foi reduzido a um vazio espiritual e moral.
A personalidade é forjada na infância e nossas ações são determinadas por impulsos e desejos que podem ou não ser reprimidos, o que depende, entre outras coisas, de traumas vivenciados no passado (id, ego e super-ego). Ademais, no intelecto humano há ainda a esfera inexplorada do inconsciente, âmbito esse inatingível pelas escolhas humanas; ao contrário, talvez seja o inconsciente que determine aquelas “escolhas”.
Além dos dois grandes pensadores acima, Marx e Nietzsche, cada qual a seu modo, concluem que Deus está morto. E, para piorar ainda mais a situação, a filosofia da linguagem sepultou de vez a metafísica e qualquer possibilidade de apreensão racional do transcendente e, portanto, de Deus. Assim, o Homem, já convalescido em sua auto-estima, perde a última possibilidade de encontrar fora de si um sentido à sua existência.
É nesse contexto que deve ser lido o texto “O Existencialismo é um Humanismo”, de Jean-Paul Sartre.
Para esse pensamento, antes de se tentar buscar um sentido para a vida ou qual a sua essência, deve-se levar em conta o fato de se existir: “A EXISTÊNCIA PRECEDE A ESSÊNCIA”.
Em sendo assim, não é porque a vida é contingente ou porque Deus não existe que as pessoas devam se tornar inteiramente irresponsáveis e amorais.
O escritor russo Dostoiévski, em sua obra “Os Irmãos Karamazovi”, afirmou que “se Deus não existe tudo é permitido”. Tanto para Freud quanto para Sartre isso é uma infantilidade.
Quer dizer que só se age com responsabilidade e a partir de regras morais porque, em caso contrário, receber-se-ia castigo de Deus? Quer dizer que nossa responsabilidade está lastreada na existência de algo externo a nós e não em nossas próprias convicções?
Freud diz que Deus é uma necessidade infantil, uma muleta que dá explicação às crianças da origem do homem e que, por outro lado, disciplina as suas condutas pelo medo do castigo.
O adulto, na plenitude de suas faculdades mentais, deveria abandonar essa muleta (como se abandona a chupeta) e se conduzir com suas próprias pernas. Se minha conduta se orienta dessa ou daquela forma é porque entendo que isso seja o melhor e jamais porque temo a Deus.
Nesse sentido Sartre traz a sua noção de liberdade, em que no mundo “o homem está condenando a ser livre”, pois, despido de qualquer fator externo, ele é o único condutor do seu destino.
Se há mal no mundo, a responsabilidade é única e exclusivamente do próprio homem. Transferir essa responsabilidade para um “pecado original”, por exemplo, é um subterfúgio obscurantista que só serviu como justificativa das práticas de dominação mais funestas.
Portanto, fugindo do relativismo moral de Dostoiévski — pensamento esse dominante da pós-modernidade e cuja origem está aqui toscamente desvelada — deve ser ressaltada a liberdade do ser humano, a qual resulta na sua responsabilidade de conduzir o seu próprio destino, sempre com o “espírito infeliz” de estarmos sós no mundo. Somos nós que damos razão à nossa existência, posto que não há sentido pré-determinado.
Da ausência de um fundamento para a nossa existência, ou pelo menos da busca de uma essência ou de uma razão de ser das coisas (não nos preocupemos com a essência pois antes de tudo existimos, dizem os filósofos existencialistas), decorre a angústia própria do homem do final desse século, cujo resultado pode levar a um questionamento profundo com relação à manutenção de nossa própria vida, pois, além de nossos semelhantes, não podemos contar com mais ninguém, dado que estamos solitários e desamparados (ausência de Deus) nesse imenso Universo.
Com relação ao problema do suicídio (já tratado à exaustão por psicólogos, sociólogos, filósofos, etc.) quando praticado em decorrência do “vazio” (sem sentido) da existência, interessante mencionar a aridez narrativa da poesia de João Cabral de Melo Neto, em especial no momento em que o retirante Severino questiona a um carpinteiro se o melhor a fazer não é o suicídio (Morte e Vida Severina):
— Seu José, mestre carpina,
que diferença faria
se em vez de continuar
tomasse a melhor saída:
a de saltar, numa noite,
fora da ponte e da vida?
Nesse momento da narrativa a mulher do carpinteiro anuncia a ele o nascimento de seu filho, ocasião em que se iniciam alguns festejos e após o que, chamando Severino a um canto, Seu José busca uma resposta àquela pergunta:
— Severino, retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta
se quer mesmo que lhe diga.
É difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, severina;
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.
E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.
Essas algumas observações que servem como “chave de leitura” para a compreensão do texto “O Existencialismo é um Humanismo”, cujo teor é imprescindível para entendermos o que se passa no final desse século e para pensarmos no que pretendemos no futuro.
Outubro de 1998
José Renato Gaziero Cella
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